Apreensão de livros e documentos em escritórios de contabilidade
Decisão do Supremo Tribunal Federal
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os escritórios de contabilidade estão sujeitos à proteção constitucional de inviolabilidade domiciliar.
Conforme decisão abaixo reproduzida, o STF deferiu habeas corpus reputando inadmissível a apreensão de livros contábeis e documentos fiscais em escritórios de contabilidade por agentes fazendários e policiais federais, sem mandato judicial.
Segue decisão do STF (Informativo nº 514/08)
HC N. 93.050-RJ*
*RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO*
E M E N T A: FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA – APREENSÃO DE LIVROS CONTÁBEIS E
DOCUMENTOS FISCAIS REALIZADA, EM ESCRITÓRIO DE CONTABILIDADE, POR
AGENTES FAZENDÁRIOS E POLICIAIS FEDERAIS, SEM MANDADO JUDICIAL –
INADMISSIBILIDADE – ESPAÇO PRIVADO, NÃO ABERTO AO PÚBLICO, SUJEITO À
PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR (CF, ART. 5º, XI)
– SUBSUNÇÃO AO CONCEITO NORMATIVO DE "CASA" – NECESSIDADE DE ORDEM
JUDICIAL – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA – DEVER DE
OBSERVÂNCIA, POR PARTE DE SEUS ÓRGÃOS E AGENTES, DOS LIMITES JURÍDICOS
IMPOSTOS PELA CONSTITUIÇÃO E PELAS LEIS DA REPÚBLICA – IMPOSSIBILIDADE
DE UTILIZAÇÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DE PROVA OBTIDA COM TRANSGRESSÃO
À GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR – PROVA ILÍCITA – INIDONEIDADE
JURÍDICA – "HABEAS CORPUS" DEFERIDO.
ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA – FISCALIZAÇÃO – PODERES – NECESSÁRIO RESPEITO
AOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS DOS CONTRIBUINTES E DE TERCEIROS.
– Não são absolutos os poderes de que se acham investidos os órgãos e
agentes da administração tributária, pois o Estado, em tema de
tributação, inclusive em matéria de fiscalização tributária, está
sujeito à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que
assistem, constitucionalmente, aos contribuintes e aos cidadãos em
geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e
garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode
caracterizar ilícito constitucional.
– A administração tributária, por isso mesmo, embora podendo muito, não
pode tudo. É que, ao Estado, é somente lícito atuar, "respeitados os
direitos individuais e nos termos da lei" (CF, art. 145, § 1º),
consideradas, sobretudo, e para esse específico efeito, as limitações
jurídicas decorrentes do próprio sistema instituído pela Lei
Fundamental, cuja eficácia – que prepondera sobre todos os órgãos e
agentes fazendários – restringe-lhes o alcance do poder de que se acham
investidos, especialmente quando exercido em face do contribuinte e dos
cidadãos da República, que são titulares de garantias impregnadas de
estatura constitucional e que, por tal razão, não podem ser
transgredidas por aqueles que exercem a autoridade em nome do Estado.
A GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR COMO LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL
AO PODER DO ESTADO EM TEMA DE FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA – CONCEITO DE
"CASA" PARA EFEITO DE PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL – AMPLITUDE DESSA NOÇÃO
CONCEITUAL, QUE TAMBÉM COMPREENDE OS ESPAÇOS PRIVADOS NÃO ABERTOS AO
PÚBLICO, ONDE ALGUÉM EXERCE ATIVIDADE PROFISSIONAL: NECESSIDADE, EM TAL
HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL (CF, ART. 5º, XI).
– Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º, XI, da
Constituição da República, o conceito normativo de "casa" revela-se
abrangente e, por estender-se a qualquer compartimento privado não
aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (CP, art.
150, § 4º, III), compreende, observada essa específica limitação
espacial (área interna não acessível ao público), os escritórios
profissionais, inclusive os de contabilidade, "embora sem conexão com a
casa de moradia propriamente dita" (NELSON HUNGRIA). Doutrina. Precedentes.
– Sem que ocorra qualquer das situações excepcionais taxativamente
previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público,
ainda que vinculado à administração tributária do Estado, poderá, contra
a vontade de quem de direito ("invito domino"), ingressar, durante o
dia, sem mandado judicial, em espaço privado não aberto ao público, onde
alguém exerce sua atividade profissional, sob pena de a prova resultante
da diligência de busca e apreensão assim executada reputar-se
inadmissível, porque impregnada de ilicitude material. Doutrina.
Precedentes específicos, em tema de fiscalização tributária, a propósito
de escritórios de contabilidade (STF).
– O atributo da auto-executoriedade dos atos administrativos, que traduz
expressão concretizadora do "privilège du preálable", não prevalece
sobre a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar, ainda que
se cuide de atividade exercida pelo Poder Público em sede de
fiscalização tributária. Doutrina. Precedentes.
ILICITUDE DA PROVA – INADMISSIBILIDADE DE SUA PRODUÇÃO EM JUÍZO (OU
PERANTE QUALQUER INSTÂNCIA DE PODER) – INIDONEIDADE JURÍDICA DA PROVA
RESULTANTE DE TRANSGRESSÃO ESTATAL AO REGIME CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS
E GARANTIAS INDIVIDUAIS.
– A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder
perante a qual se instaure, para revestir-se de legitimidade, não pode
apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de
ofensa à garantia constitucional do "due process of law", que tem, no
dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais
expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de
direito positivo. A "Exclusionary Rule" consagrada pela jurisprudência
da Suprema Corte dos Estados Unidos da América como limitação ao poder
do Estado de produzir prova em sede processual penal.
– A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório
(CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que
regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º),
qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão
a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo,
quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito
material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em
conseqüência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de
atividade probatória, a fórmula autoritária do "male captum, bene
retentum". Doutrina. Precedentes.
– A circunstância de a administração estatal achar-se investida de
poderes excepcionais que lhe permitem exercer a fiscalização em sede
tributária não a exonera do dever de observar, para efeito do legítimo
desempenho de tais prerrogativas, os limites impostos pela Constituição
e pelas leis da República, sob pena de os órgãos governamentais
incidirem em frontal desrespeito às garantias constitucionalmente
asseguradas aos cidadãos em geral e aos contribuintes em particular.
– Os procedimentos dos agentes da administração tributária que
contrariem os postulados consagrados pela Constituição da República
revelam-se inaceitáveis e não podem ser corroborados pelo Supremo
Tribunal Federal, sob pena de inadmissível subversão dos postulados
constitucionais que definem, de modo estrito, os limites –
inultrapassáveis – que restringem os poderes do Estado em suas relações
com os contribuintes e com terceiros.
A QUESTÃO DA DOUTRINA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA ("FRUITS OF THE
POISONOUS TREE"): A QUESTÃO DA ILICITUDE POR DERIVAÇÃO.
– Ninguém pode ser investigado, denunciado ou condenado com base,
unicamente, em provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária,
quer se cuide de ilicitude por derivação. Qualquer novo dado probatório,
ainda que produzido, de modo válido, em momento subseqüente, não pode
apoiar-se, não pode ter fundamento causal nem derivar de prova
comprometida pela mácula da ilicitude originária.
– A exclusão da prova originariamente ilícita – ou daquela afetada pelo
vício da ilicitude por derivação – representa um dos meios mais
expressivos destinados a conferir efetividade à garantia do "due process
of law" e a tornar mais intensa, pelo banimento da prova ilicitamente
obtida, a tutela constitucional que preserva os direitos e prerrogativas
que assistem a qualquer acusado em sede processual penal. Doutrina.
Precedentes.
– A doutrina da ilicitude por derivação (teoria dos "frutos da árvore
envenenada") repudia, por constitucionalmente inadmissíveis, os meios
probatórios, que, não obstante produzidos, validamente, em momento
ulterior, acham-se afetados, no entanto, pelo vício (gravíssimo) da
ilicitude originária, que a eles se transmite, contaminando-os, por
efeito de repercussão causal. Hipótese em que os novos dados probatórios
somente foram conhecidos, pelo Poder Público, em razão de anterior
transgressão praticada, originariamente, pelos agentes estatais, que
desrespeitaram a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar.
– Revelam-se inadmissíveis, desse modo, em decorrência da ilicitude por
derivação, os elementos probatórios a que os órgãos estatais somente
tiveram acesso em razão da prova originariamente ilícita, obtida como
resultado da transgressão, por agentes públicos, de direitos e garantias
constitucionais e legais, cuja eficácia condicionante, no plano do
ordenamento positivo brasileiro, traduz significativa limitação de ordem
jurídica ao poder do Estado em face dos cidadãos.
– Se, no entanto, o órgão da persecução penal demonstrar que obteve,
legitimamente, novos elementos de informação a partir de uma fonte
autônoma de prova – que não guarde qualquer relação de dependência nem
decorra da prova originariamente ilícita, com esta não mantendo
vinculação causal -, tais dados probatórios revelar-se-ão plenamente
admissíveis, porque não contaminados pela mácula da ilicitude originária.
– A QUESTÃO DA FONTE AUTÔNOMA DE PROVA ("AN INDEPENDENT SOURCE") E A SUA
DESVINCULAÇÃO CAUSAL DA PROVA ILICITAMENTE OBTIDA – DOUTRINA –
PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (RHC 90.376/RJ, Rel. Min. CELSO
DE MELLO, v.g.) – JURISPRUDÊNCIA COMPARADA (A EXPERIÊNCIA DA SUPREMA
CORTE AMERICANA): CASOS "SILVERTHORNE LUMBER CO. V. UNITED STATES
(1920); SEGURA V. UNITED STATES (1984); NIX V. WILLIAMS (1984); MURRAY
V. UNITED STATES (1988)", v.g..